Desenhando Poesia

Os poemas são pássaros que chegam/não se sabe de onde e pousam no livro que lês. /Quando fechas o livro, eles alçam vôo como de um alçapão./ Eles não têm pouso nem porto/ alimentam-se um instante em cada par de mãos e partem./ E olhas, então, essas tuas mãos vazias,/no maravilhado espanto de saberes/que o alimento deles já estava em ti... Mário Quintana

15.10.06

Vinícius de Moraes. SÃO FRANCISCO



Lá vai São Francisco
Pelo caminho
De pé descalço
Tão pobrezinho
Dormindo à noite
Junto ao moinho
Bebendo a água
Do ribeirinho.

Lá vai São Francisco
De pé no chão
Levando nada
No seu surrão
Dizendo ao vento
Bom-dia, amigo
Dizendo ao fogo
Saúde, irmão.

Lá vai São Francisco
Pelo caminho
Levando ao colo
Jesuscristinho
Fazendo festa
No menininho
Contando histórias
Pros passarinhos.

Carlos Drummond de Andrade. O AMOR É BICHO INSTRUÍDO

Amor é bicho instruído
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

7.10.06

Fernando Pessoa.CONTA A LENDA QUE DORMIA


Conta a lenda que dormia
Uma princesa encantada
A quem só despertaria
Um infante que viria
De além do muro da estrada

Ele tinha que, tentado
Vencer o bem e o mal
Antes que, já libertado
Deixasse o caminho errado
Por o que à princesa vem

A princesa adormecida
Se espera, dormindo espera
Sonha em morte a sua vida
E orna-lhe a fronte esquecida
Verde, uma grinalda de hera

Longe o infante esforçado
Sem saber que intuito tem
Rompe o caminho fadado
Ela dele ignorado
Ele pra ela é ninguém

Mas cada um cumpre o destino
Ela dormindo encantada
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada afora
E falso, ele vem seguro
E vencendo estrada e muro
Chega onde em sono ela mora

E, inda tonto do que houvera
A cabeça em maresia
Ergue o braço e encontra a hera
E vê que ele mesmo era
A princesa que dormia.

2.10.06


A virtude é a mãe do vício
conforme se sabe;
acabe logo comigo
ou se acabe.

A virtude e o próprio vício
- conforme se sabe –
estão no fim, no início
da chave.

Chuvas da virtude, o vício,
conforme se sabe;
é nela propriamente que me ligo
nem disco nem filme:
nada, amizade. Chuvas de virtude:
chaves.

(amar-te / a morte / morrer :
há urubus no telhado e a carne seca
é servida: um escorpião encravado
na sua própria ferida, não escapa: só escapo
pela porta de saída).

A virtude, a mãe do vício
como eu tenho vinte dedos,
ainda, e ainda é cedo:
você olha nos meus olhos
mas não vê nada, lembra ?

A virtude
mais o vício: início da
MINHA
transa, início, fácil, termino:
“como dois mais dois são cinco”
como Deus é precipício,
durma,
e nem com Deus no hospício,
(durma) nem o hospício
é refúgio. Fuja.